8 de abril de 2016

País selvagem


Apesar de hoje ser uma atividade predominantemente industrial, o mundo do vinho se orgulha de apresentar, aqui e ali, projetos de manutenção - ou resgate - de tradições, projetos que remetem a um passado artesanal-romântico, e que apresentam vinhos diferentes, fora dos "padrões" atuais, autênticos.

É o caso da uva País, no Chile.

Uva vinífera americana

Ela tem suas origens na Espanha. É uma mutação da Listán Prieto, uva vinífera. Talvez seja original do continente, mais especificamente de Castilla y León, mas há séculos ela é muito mais cultivada nas Ilhas Canárias do que na Espanha continental. Das ilhas, ela foi levada por missionários para a América espanhola, ainda no século XVI. Porém aqui, sofreu mutações, e por isso apresenta diferenças de DNA suficientes para ser considerada uma nova variedade: ou seja, é uma vitis vinifera autenticamente americana. Resistente, se adaptou bem em diversas regiões, como Califórnia, Chile e Andes argentinos. Nos Estados Unidos, ela é chamada de Missión; na Argentina, de Criolla Chica; e no Chile, ela foi oficialmente renomeada País, em 1850.

Durante séculos passados, muito antes do sucesso da Cabernet Sauvignon e da Carmenère, a grande maioria do vinho chileno era feito de País. Eram vinhos de mesa: simples, rústicos, artesanais, feitos para consumo local. Eram vinhos de pouca cor, pouca estrutura, e considerados de baixa qualidade. A partir do início do Século XX, o governo do país promoveu iniciativas de substituição da cepa por outras de mais prestígio, com o intuito de melhorar a qualidade do vinho. Em muitos casos, as vinhas de País foram arrancadas para dar lugar a outras variedades, em outros, foram literalmente abandonadas, mesmo. Essas vinhas abandonadas - plantadas sem condução e de forma desordenada - continuaram crescendo sem acompanhamento, sem irrigação e sem tratamento. Como trepadeiras, elas cresceram trepando em árvores próximas. Hoje elas dão cachos no alto de árvores, chegando a até 5 metros de altura.

Vinhas selvagens

Nos últimos anos, alguns produtores chilenos têm tentado trabalhar essa variedade, mostrar seu devido valor, e resgatar sua importância histórica. Um desses produtores é a Bouchon Family Wines. Em sua propriedade na região de Mingre, sul do Vale do Maule, havia uma pequena mata em que vinhas de País cresciam livremente em meio às árvores, e como trepadeiras, cresceram conduzidas por essas árvores, passando a dar frutos em meio às suas copas. A vinícola estima que as vinhas tenham pelo menos 80 anos de idade; e a colheita só é possível com o uso de escadas de 5 metros de altura. Dessas videiras, nasce o País Salvaje 2015.

Colheita da País na Bouchon (foto do produtor)

Eles optaram por um estilo de vinificação mais natural, condizente com o estado selvagem das vinhas. Metade foi prensada em zarandas, um instrumento rudimentar que era usado no Chile, no passado. E a outra metade foi vinificada em maceração carbônica (ao estilo Beaujolais - veja aqui como é), sempre em cubas de cimento. Fermentou com leveduras selvagens (isto é, que já estavam nas cascas das uvas), e não passou por madeira. O vinho foi engarrafado sem filtrar, e por isso, ao final havia borra presa às paredes internas da garrafa (mas nenhuma borra chegou às taças).

O vinho é classificado como tinto, mas tinha cor tão clara, que já tomei rosé mais escuro. Predominavam os aromas de perfume e frutas vermelhas (como cereja e groselha), com um leve toque herbáceo, como folhas não aromáticas. Tinha corpo muito leve, taninos também muito sutis, baixo teor alcoólico, e acidez destacada. É um vinho para se beber jovem, e pode ser servido quase tão frio quanto um vinho branco (12ºC, tranqüilamente), pois a acidez é intensa, e os taninos, muito leves. Não serve para quem gosta de vinhos bombados, com altas notas de RP. Eu, gostei.

Cor do País Salvaje, na taça

2 comentários:

  1. Primeiramente, obrigado pela aula sobre a origem da País. :)

    Quando no Chile, tentei achar rótulos de País para trazer pra casa mas o único que achei encontrei foi o corte de País (85%) e Cinsault dentro da linha Marques de Casa Concha. Bom vinho, leve e que praticamente casa com sua descrição para o Salvaje 2015.

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    1. Olá Edward, não há de quê.
      Creio que hoje, a maioria dos projetos com País são de pequenas produções, mas a oferta deve aumentar, pelo menos no curto prazo (se o crescimento irá se manter no médio e longo prazos, não sei).
      Aqui no Brasil, o País Salvaje infelizmente não é importado, mas se quiser, há o Miguel Torres Reserva del Pueblo País, sendo vendido na Wine (aqui). Provei este da Miguel Torres no mesmo dia que o País Salvaje, mas acho que havia um defeito: deve ter ocorrido um pouco de malolática na garrafa, pois apresentava bolhas, e não creio que elas fossem intencionais. Por outro lado, como é um vinho para se consumir jovem, as bolhas não arruinaram o vinho.

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