21 de abril de 2016

Vigno: vignadores de Carignan

Há duas semanas, escrevi sobre a uva País - uma variedade tradicional do Chile - e o trabalho de resgate feito por alguns produtores. Pois esta não é a única variedade que vem sendo resgatada no Chile, nos últimos anos. Um grupo de produtores tem trabalhado para resgatar vinhas velhas de Carignan no Vale do Maule. O fruto deste trabalho é a VIGNO - Vignadores de Carignan.


Do que se trata a VIGNO

A Carignan é provavelmente originária da região de Aragón, na Espanha, mais especificamente de uma localidade chamada Cariñena. Ela se expandiu por todo o Mediterrâneo, ocupando grandes extensões do sul da França, chegando também ao sul da Itália, e Sardenha. Ela tem maturação tardia, e gera vinhos de muita cor, corpo, tanino, álcool e acidez. Porém é muito suscetível ao fungo do míldio, por isso se adapta melhor em áreas mais secas e quentes. Dois fatores contribuíram para a queda em sua popularidade, nas últimas décadas: primeiro, ela tem cachos muito rígidos, o que torna difícil a colheita mecanizada; e segundo, ela tende a um excesso de rendimento, e se não for controlada, gera vinhos insípidos, fracos em aromas e sabor.

Ela se popularizou no Chile na década de 1940, em uma iniciativa do governo em aumentar o preço dos vinhos do Vale do Maule, que até então eram dominados pela País. O objetivo era aportar mais cor e estrutura, adicionando a Carignan ao vinho local. Apesar de um bom resultado inicial, a sua popularidade caiu a partir da década de 1980; devido à sua fama de excesso de produtividade, ela deu lugar a outras variedades francesas com maior valor de mercado, como Cabernet Sauvignon e Merlot.

Muitas vinhas, plantadas em cabeza (isto é, em arbustos sem sistemas de condução), foram abandonadas, mas resistiram produzindo ano após ano, mesmo sem tratamento ou irrigação. Alguns produtores perceberam o potencial dessas vinhas velhas e, um após outro, começaram a recuperá-las, e fazer vinhos com suas uvas. Logo, se reuniram, em torno da idéia de divulgação do potencial dessas vinhas velhas. O objetivo inicial é estabelecer uma Denominação de Origem, baseada em regras para garantia da qualidade e tipicidade. Ainda não conseguiram ter o reconhecimento da DO, mas 15 produtores associados rotulam vinhos com a marca, seguindo as regras da associação:
  • O vinho deve ter no mínimo 65% de Carignan, o restante é livre;
  • 100% proveniente de área delimitada, ao sul do vale do Maule;
  • 100% deve ser proveniente de vinhas de mais de 30 anos de idade;
  • vinhedos cultivados em secano (sem irrigação);
  • vinhedos de condução em cabeza (arbustos);
  • as vinhas devem ser enxertadas sobre raízes de País, ou outras cepas antigas;
  • o vinho deve ter guarda mínima de 2 anos, antes da comercialização.


Na prática

A associação inclui tanto pequenos quanto grandes produtores chilenos: basta que seus vinhos sigam as regras acima. Em uma reunião de uma das minhas confrarias, tivemos quatro exemplares de Vigno: Morandé, De Martino, Garcia+Schwaderer e Garage Wine Co. (Os dois últimos, além da Vigno, também fazem parte de outro interessante projeto chileno: o MOVI (Movimiento de los Viñateros Independientes), mas este é um outro assunto.) O painel foi assim:


Vinhedo de onde provém as uvas do Vigno de Garcia & Schwaderer (foto do produtor)

Garcia+Schwaderer Vigno 2009
Felipe Garcia e Constanza Schwaderer são um casal de enólogos que, após trabalharem por muitos anos em algumas vinícolas chilenas, em 2006 decidiram lançar um projeto próprio. Eles se descrevem como puristas enológicos e defensores do terroir. Sua versão de Vigno é 100% Carignan, de um vinhedo plantado em 1958. Ele envelheceu por 24 meses em barricas de carvalho francês. O aroma, de média intensidade, começou exibindo toques florais, frutas maduras, couro, baunilha e tostado da barrica. Na boca, tinha alta acidez, corpo médio e taninos de média intensidade, agradáveis, e alta persistência aromática. Com o tempo em taça, o couro se dissipou, e apresentou nuances de caramelo, bala de café e menta.

Morandé Vigno 2010
Pablo Morandé foi por muitos anos enólogo da Concha Y Toro. Ainda lá, foi o desbravador do Vale de Casablanca, hoje uma região de consagrada produção vinícola. Em 1996, criou sua própria empresa, a Viña Morandé, hoje com atuação em diversas regiões, somando mais de 600 hectares de vinhedos, uma ampla linha de produtos, e exportação para mais de 40 países. Seu Vigno leva 70% Carignan, 26% de Syrah, e um pequeno complemento de Chardonnay, com envelhecimento de 26 meses em barricas novas, de carvalho americano. Seu aroma exalava principalmente licor de frutas negras (de cassis, por exemplo), bastante baunilha, e um pouco de esparadrapo. Na boca, parecia um pouco mais fresco, com frutas vermelhas maduras, acidez em destaque, taninos discretos, corpo mediano, e persistência média. O aroma de esparadrapo não se dissipou, mas pelo menos nem predominou.

Garage Wine Co Vigno 2011
O canadense Derek Mossman se encantou com o Chile, e decidiu se mudar para o país. Em 2001, começou o projeto de produzir vinhos em sua garagem - com a ajuda de sua esposa Pilar, e o amigo Álvarez Peña - que resultou na Garage Wine Co. Seus vinhos são todos produzidos em pequena escala, com vinhedos arados com animais, sem tratamentos sintéticos, e vinhos fermentados com leveduras nativas do vinhedo, e sem nenhum aditivo além do mínimo necessário de sulfito. Seu Vigno é produzido a partir do vinhedo de Sauzal, de mais de 70 anos. Ele estagiou por dois invernos em barricas neutras (de 3 usos ou mais), sendo resultado do corte de 12 barricas de Carignan, 2 de Grenache e um de Mourvèdre. É um vinho fora do padrão de mercado, exatamente como pretende Derek. O aroma não era dos mais encantadores, de baixa intensidade, e com predomínio de notas de própolis e cânfora. Já na boca, ele era bem mais agradável, com frutas vermelhas maduras, e mesmo uma lembrança cítrica de laranja. Também teve alta acidez, corpo médio, taninos de média intensidade, e alta persistência aromática.

De Martino Vigno 2012
A família De Martino chegou ao Chile em 1934, vinda da Itália, e se instalou em Maipo. O negócio cresceu, e a vinícola adquiriu vinhedos em diversas regiões do Chile. A partir de 1998, a empresa decidiu repensar seus vinhos. Converteu todos os vinhedos para cultivo orgânico - são o segundo maior produtor orgânico do Chile - e abandonaram os vinhos opulentos, padronizados, de uvas sobremaduras e excessivamente amadeirados; em vez disso, passaram a buscar vinhos com mais expressão do terroir, utilizando fermentação com leveduras do próprio vinhedo, dando preferência para tanques de aço, concreto, ou grandes tonéis. Sua versão de Vigno vem de um vinhedo de 4,5 hectares, chamado La Aguada, plantado em 1955. O próprio vinhedo é composto de 85% Carignan, com o restante de Malbec e Cinsault. Portanto, se trata de um field blend, isto é, um corte no vinhedo. O vinho estagiou 2 anos em grandes tonéis (foudres) de 5 mil litros. O aroma, bem fraco, trazia frutas negras, e um pouco de especiarias. A aeração não ajudou, porém, assim como o anterior, na boca ele se mostrou mais saboroso, com boa acidez, taninos intensos e alta persistência aromática, com notas tostadas.

Carignan do vinhedo Sauzal, explorado pela Garage Wine Co. (foto: Instagram)

Os quatro Vignos eram de anos diferentes: 2009 a 2012. Nem por isso, a idade foi perceptível em nenhum deles. Todos tinham cor rubi, sem nenhum traço granada. Também se assemelharam em termos de perfil gustativo: em todos, a acidez se destacava. O álcool - mesmo sendo 14,5% para os três primeiros e 13,5% para o De Martino - esteve discreto em todos os vinhos. O corpo era sempre médio, apesar de pequenas variações. Quanto aos taninos, variaram um pouco mais, com mais intensidade no De Martino, e menor intensidade no Morandé. Ainda assim, em todos os casos, eram taninos agradáveis e macios. Diferentemente da País, que gera vinhos mais ligeiros, e feitos para serem consumidos jovens, os Vignos são mais potentes - porém longe de serem pesados - e certamente podem ser guardados por mais alguns anos.

A grande diferença entre os quatro foi o perfil aromático. Enquanto o Morandé se destacou pela sobrematuração das uvas, e pela baunilha das barricas americanas novas (o esparadrapo, uma possível contaminação por brett, apesar de perceptível, não se destacava); o Garage Wine mostrou os aromas mais inesperados, com mais cara de 'vinho natural'. O Garcia+Schwaderer, por sua vez, me pareceu o mais complexo em termos de aroma, e foi meu preferido. E o De Martino, foi o que apresentou nariz mais inexpressivo. Não era ruim, mas os outros três foram melhores.

Leituras recomendadas

Para conhecer mais a fundo o projeto e os produtores dos vinhos provados, li vários textos na Internet, dos quais selecionei esta pequena lista, como os mais recomendados.
Acerca do projeto VIGNO:
Acerca dos produtores dos vinhos deste painel:

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