25 de março de 2018

Visita a Bodegas RE


No final de fevereiro, fui ao Chile de férias. O objetivo foi visitar a região de Puerto Varas e os lagos andinos; mas aproveitei para dar uma passadinha em uma vinícola. E ao escolher uma só vinícola, não poderia ser outra que não as Bodegas RE, cujos vinhos criativos, frescos e cheios de personalidade me conquistaram no ano passado.

A vinícola é o mais novo projeto de Pablo Morandé, um dos principais enólogos do Chile. Ele foi o pioneiro na produção de vinhos no Vale de Casablanca, hoje uma referência no Chile na produção de vinhos brancos. Na década de 1980, como enólogo da Concha y Toro, ele sugeriu a esta o investimento na região. A empresa não demonstrou interesse, então ele mesmo decidiu plantar os primeiros vinhedos, e formar a vinícola que leva seu nome, a Morandé. No início do século, ele vendeu sua parte na Viña Morandé, e criou o novo projeto familiar, as Bodegas RE, cujo nome remete a recriar, reinventar, revelar, renascer, reviver. Hoje, a condução da empresa está mais a cargo dos filhos, mas Don Pablo segue acompanhando.

A nova vinícola, como não podia deixar de ser, se localiza no vale de Casablanca. E nos vinhedos da região, eles cultivam principalmente variedades brancas - Sauvignon Blanc, Riesling, Gewürztraminer, Chardonnay e Pinot Gris - mas também Pinot Noir e Syrah, duas variedades tintas que se adaptam bem a climas mais frios. Além disso, a família possui vinhedos no Maule, onde cultivam outras variedades tintas, como Carignan, Garnacha, Cabernet Sauvignon, Cinsault, e também um pouco de Syrah.


Visita

De acordo com o Raúl, nosso guia na visita, a família soma mais de 300 hectares de terras nos dois vales. No entanto, a maior parte das uvas colhidas é vendida a outros produtores; e eles mantém apenas a melhor parte, produzindo apenas 45 mil garrafas de vinho por ano. Um exemplo disso é a vinha de Pinot Gris, a mais próxima ao centro de visitantes, e a única em que passamos na visita. Raúl comentou que já produziram um vinho com ela há alguns anos, mas há algum tempo que ela não atinge a qualidade desejada para eles. Não sei se elas atingirão a qualidade este ano, mas ainda não estavam muito maduras.

Após a rápida passagem na vinha, voltamos para a bodega, passando primeiro pela sala de licores. Este é um projeto pessoal do Pablo pai, que não abre mão das decisões. Estão sendo produzidos licores de diversas frutas, ervas e temperos, macerados em um álcool de grãos com 5 destilações, uma super-vodka, como disse Raúl. A opção deste álcool, em vez de uma aguardente vínica, é porque este é mais neutro, sem nenhum sabor. O destaque pra eles é o licor de guinda, ou cereja azeda (exatamente a mesma cereja que em Portugal é chamada de ginja). Mas o que me chamou mesmo a atenção foi o licor de nêsperas, que tem um aroma idêntico ao licor de amêndoas Amaretto. Especulamos que talvez esse sabor venha das sementes, já que este licor é macerado com a fruta inteira. Independente do motivo, o resultado é muito interessante.


Também é muito interessante o trabalho de produção de vinagre balsâmico, a etapa seguinte da visita. É feito a partir de vinho Cabernet Sauvignon, ao qual se adiciona 15% de mosto não fermentado, que lhe dá uma doçura especial. O processo de produção envolve 5 barriquinhas, de tamanhos decrescentes, e cada um de uma madeira diferente. A idéia original era que o vinagre passaria dois anos em cada barriquinha, reduzindo o volume por evaporação, ficando cada vez mais concentrado (por isso os barris têm tamanhos decrescentes), e absorvendo os sabores de diferentes madeiras. No entanto, iria demorar demais para chegar ao produto final; por isso, adaptaram a idéia, mesclando vinagres novos e antigos, e redistribuindo-os novamente entre as barricas. Isso permitiu chegar a um produto final com apenas 5 anos. E o vinagre, que provamos posteriormente na degustação, é delicioso, adocicado e muito frutado. Até trouxemos uma garrafa para o Brasil.


Conceito RE

A última parte do tour foi a adega subterrânea, onde estão as famosas tinajas centenárias de argila, além de barris, barricas e tanques de cimento. Tinajas são vasilhames de barro, semelhantes às ânforas gregas, só que de origem indígena. Antes da chegada dos espanhóis, os índios locais usavam esses vasilhames para fermentar e conservar a chicha, um fermentado de milho. Os espanhóis adotaram esses vasilhames para a produção local de vinho, uma tradição que caiu gradualmente em desuso a partir da independência do Chile, mas que se manteve marginal, em produções artesanais. Para se aprofundar, leia História do vinho chileno.

A família Morandé possuía diversas dessas tinajas, de tamanhos diferentes, e decidiu usá-las como o coração deste novo projeto. Todos os vinhos fermentam nelas, que ficam semi-enterradas no solo da bodega, de forma a garantir naturalmente o controle de temperatura. Mas o maior benefício, de acordo com o nosso guia, é o formato esférico, que durante a dinâmica da fermentação, promove uma movimentação natural que impede a formação do "chapéu". Este é o nome dado ao acúmulo das cascas sobre o líquido, e quando ele ocorre, precisa ser submerso novamente. Mas dentro das tinajas, elas são submersas novamente pelo movimento natural do líquido em fermentação.

O efeito é similar aos tanques de cimento ovais, que também têm aumentado a popularidade. Aliás, com o intuito de expandir a produção (já que as tinajas são bem pequenas), as Bodegas RE encomendaram a construção de tanques de cimento; mas mantendo-se fiéis à herança indígena, em vez de formato oval, seus tanques de cimento foram construídos em formato de tinajas (e pintados por fora de cor ocre, parecem de barro).

As tinajas e tanques estavam vazios, à espera da colheita que ainda tardaria. A ação, no momento, estava reservada aos barris e barricas, onde descansavam vinhos tintos e de sobremesa. A madeira tem o intuito de fornecer micro-oxigenação, e não dar gosto; por isso, eles só usam barricas usadas, sendo que algumas já foram reusadas 5 vezes, e não têm previsão de serem descartadas. E pensar que tem vinícola que se vangloria de só usar barricas novas, como se isso fosse necessário para fazer bom vinho...


Degustação

A degustação foi acompanhada de uma tábua com carne de charque de wagyu, queijo, azeitonas, pão, além do azeite e do vinagre balsâmico produzidos por eles. Eles são bem flexíveis, e por isso minha degustação foi um "bem bolado" dos vinhos que eu queria conhecer. No fim, ainda provamos dois licores.

Bálsamo de vino: o vinagre feito de Cabernet Sauvignon, com adição de 15% de mosto (não fermentado), e envelhecido por 5 anos em pequenas barricas de diferentes tipos de madeira. É muito frutado, e levemente adocicado. O aroma não remete a vinagre balsâmico, predominando a fruta. Mas é uma fruta muito mais saborosa do que vinagres regulares, e a doçura do mosto adicionado o torna ainda mais gostoso.

Aceite de oliva: as azeitonas e azeite são produzidos em outra propriedade. São azeitonas de um punhado de variedades diferentes, mas todas bem pequenas. Sabor frutado suave, tendendo mais para o picante.


Renoir Nature Virgen: um espumante blanc de noirs, 100% Pinot Noir. Elaborado pelo método tradicional, com mínimo de 2 anos de maturação, sem dégorgement, e portanto, sem licor de dosagem. Tem uma cor madrepérola, é completamente turvo, com alta acidez, e muito seco, mas a borra lhe dá corpo, equilíbrio, e aroma de massa de pão crua. Infelizmente, a produção é pequena, e já não tinham em estoque.

Enredo 2016: feito a partir das uvas Gewurztraminer (70%) e Riesling (30%), é um vinho laranja, isto é, um branco vinificado com cascas, macerando por 3 meses nas tinajas de argila. Tem cor alaranjada brilhante, é muito seco, aromático - remetendo mais à gewürz - encorpado, mas com ótima acidez. Complexo, intenso, e diferente, como costumam ser os vinhos laranjas.

Syranoir 2014: Um corte de Syrah com Pinot Noir (60/40), ambas cultivadas no Vale de Casablanca, e fermentadas juntas. Ele mostra características de clima frio, com aromas vegetais que remetem à azeitona e folhas verdes, uma fruta vermelha fresca, e um pouco de pimenta. Eu tinha alta expectativa pelo frescor, mas o aroma vegetal não me atraiu tanto. Não é ruim, mas preferi os outros.

Syragnan 2016: Syrah (90%) com uma pequena adição de Carignan, também cofermentados, mas dessa vez, ambos provenientes do Vale do Maule. É um vinho nitidamente de clima quente, mais exuberante, com fruta mais madura, floral, um pouco mais encorpado, e com taninos mais finos. Gostei mais desse que do outro.

RE Doble 2015: as uvas desse vinho vêm de um vinhedo do Vale do Maule, em plantas com dupla enxertia, isto é, duas plantas de variedades diferentes, enxertadas em uma mesma raiz. A raiz era da variedade País, e foi enxertada com Grenache e Carignan. Frutado, floral, elegante, com acidez vibrante, taninos discretos, e com boa persistência. Me encantei com o frescor do vinho.


Cabergnan 2010: um Cabernet Sauvignon (90%) com uma pitada de Carignan, do Maule. Permaneceu por dois meses com as cascas, nas tinajas; depois, estagiou por dois anos em barricas, e mais dois em garrafa. Em relação aos anteriores, percebe-se uma proposta bem diferente, um vinho mais evoluído. Já com quase 8 anos, ele mostra frutas negras, bálsamo, cânfora, caramelo. É encorpado, com boa acidez, e taninos intensos e finos, além de uma boa persistência. É um puta vinho.

RE Nace 2013: é a menina dos olhos da vinícola. Feito de Carignan de vinhas velhas (plantadas em 1950), e com fermentação natural (que leva até 4 semanas), mais 2 a 3 meses de maceração, nas tinajas. Depois o vinho é transferido para barris, onde passa mais 12 meses. Muito encorpado, intenso, com fruta licorosa e madeira bem integrada. A densa estrutura quase consegue esconder os 15% de álcool, mas ele esquenta um pouquinho a boca. Imagino que tenha potencial para evoluir muito, mas o preço é bem salgado.

RE Noble Sauvingon Blanc 2013: vinho doce, de colheita tardia, em que as uvas são acometidas pela "podridão nobre" (daí o nome do vinho). A fermentação ocorre em barricas, e leva até um ano, devido à alta concentração. É um vinho viscoso, muito doce, mas com intensa acidez, e longa persistência. O aroma, também intenso, traz notas típicas de um colheita tardia, com o distinto aroma da botrytis bem presente. Melhor que a maioria dos Sauternes.

RE Noble Esencia 2013: também feito de Sauvignon Blanc de colheita tardia; no entanto, neste caso não houve ataque do fungo nobre. Ele fermenta até apenas 7% de teor alcoólico, conservando a maior parte do açúcar. É semelhante ao outro, muito intenso, mas sem o aroma característico da botrytis. É um pouco mais doce, mas a acidez ainda dá conta de todo o açúcar, com folga. Me lembrou um TBA alemão.

RE Liquia: este é o nome dos licores da vinícola. Provamos tanto o de guinda (cereja azeda) quanto o de nêspera, ambos em copinhos de chocolate. O primeiro me pareceu idêntico aos licores de ginja de Óbidos, inclusive vêm com as cerejas dentro da garrafa. Já o de nêspera, conforme já comentei, desenvolveram um aroma de amêndoas, muito similar ao Amaretto. Quase comprei uma garrafa, mas já tinha estourado meu orçamento só com os vinhos.


Antes da visita, eu já tinha alto conceito em relação à bodega, pelos seus vinhos brancos e rosados (RE Velado, Chardonnoir e Pinotel), muito originais e saborosos. Agora, minha admiração aumentou, após conhecer o restante da linha. A bodega é uma visita obrigatória a quem vai ao Vale de Casablanca e sabe reconhecer um bom vinho; e certamente vai sair de lá cheio de garrafas.

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