10 de agosto de 2019

Breve história do vinho

Não é possível determinar com precisão quando o vinho foi feito pela primeira vez… O vinho nem ao menos foi inventado. Estava ali, para ser descoberto, em qualquer recipiente em que as uvas fossem estocadas por algum tempo, e retivesse seu suco. É até estranho pensar que o acidente da formação do vinho nunca tenha ocorrido nas mãos dos nômades primitivos.
Hugh Johnson - The story of wine

A lenda mais citada a respeito da origem do vinho remete à corte de um rei persa chamado Jamshid. Conta a lenda que uma de suas esposas tentou se suicidar comendo uvas que haviam sido largadas em uma jarra, estavam espumando, e tinham cheiro estranho. Em vez da morte, ela encontrou euforia, e em seguida um sono revigorante. A partir de então, o rei e sua corte passaram a deixar as uvas fermentarem antes do consumo.

Antiguidade

Saindo do lado folclórico para o científico, evidências arqueológicas atestam a produção de vinho desde pelo menos 8000 anos atrás, na região do Cáucaso: Geórgia, Armênia, leste da Turquia e norte do Irã. Foram encontrados pedaços de cerâmica contendo sementes de uva e bitartarato de potássio, uma substância produzida durante a fermentação do vinho. Além disso, as sementes encontradas eram sempre de videiras hermafroditas, o que sugere que tenham sido resultado de cultivo.

Pinturas egípcias mostrando colheita, produção e transporte do vinho (fonte: Commons Wikimedia)

Do Cáucaso, a cultura do vinho se difundiu em direção ao Mediterrâneo. O Egito Antigo (por volta de 3000 a.c.), foi a primeira cultura a registrar detalhes da produção do vinho: colheita, vinificação, envasamento em ânforas, transporte. Por volta de 2000 a.c., chegou aos Bálcãs e Chipre; e por volta de 1000 a.c. foi difundido pelos Fenícios para ilhas do Mediterrâneo, Península Itálica e Espanha.

Os gregos incorporaram o vinho em sua cultura de uma forma sem precedentes. Eles difundiram vinhedos em todas suas colônias no Mediterrâneo. São responsáveis pela introdução da viticultura em território francês, a partir da fundação de Massália (atual Marselha). Lhe atribuíram um deus - Dioníso - e diversos rituais e festivais dedicados a este. O usavam como remédio: Hipócrates, o pai da medicina, indicava o vinho como tratamento para a maioria dos males. Também era commodity: restos arqueológicos de ânforas gregas foram encontrados em diversas partes da Europa, indicando o comércio com outros povos. O ápice eram os Simposium, eventos formais e de ritual elaborado em que (normalmente apenas) os homens se reuniam para beber vinho.

Mosaico representando Dioniso, deus do vinho (fonte: Commons Wikimedia)

A cultura do vinho foi incorporada pelo Império Romano, que a expandiu aos limites do seu território. Os romanos levaram o cultivo de vinhedos até territórios das atuais Inglaterra, Alemanha (vale do Mosel), Áustria e Hungria. O comércio se expandiu: por mais que produzissem vinho ao norte da Europa, os vinhos doces produzidos sob o sol do Mediterrâneo eram os preferidos, e viajavam em grande quantidade para o norte. Quando o Império se converteu ao Cristianismo, a bebida foi adotada como um dos símbolos da nova religião.

Acredita-se que os celtas inventaram a técnica de construção de barris. Os romanos assimilaram a técnica por volta de 250 d.C., e rapidamente substituíram as antigas ânforas de barro pelo novo recipiente, muito mais leve e resistente: praticamente não há vestígios arqueológicos de ânforas mais recentes que essa data.

Monge provando o vinho do barril (fonte: Commons Wikimedia)

Idade Média

Com a queda do Império Romano (476. D.C.), as rotas de comércio terrestres se tornaram muito mais arriscadas, reduzindo drasticamente o comércio de vinho na Europa Ocidental. A produção de vinho se reduziu basicamente à subsistência, e se manteve pelos primeiros séculos principalmente graças aos cuidados de monges, como símbolo da religião.

A Europa de Carlos Magno (fonte: Commons Wikimedia)

No início do Século VIII, os Mouros invadiram e dominaram praticamente toda a Península Ibérica. No fim do mesmo século, sob o comando de Carlos Magno, os Francos dominaram boa parte da Europa Ocidental, dos Pireneus à Alemanha, e até a Croácia. A relativa segurança dentro do Império Carolíngio impulsionou a retomada do comércio e das viagens. O excedente de produção passou a ser comercializado em feiras regulares.

A Europa Oriental ainda gozou de alguns séculos de estabilidade, sob controle do Império Bizantino. A República de Veneza, que dominou o comércio marítimo no leste do Mediterrâneo entre os Séculos XI e XV, importou muito vinho grego para a Europa Ocidental, sendo o Malvasia o mais cobiçado.

A ascensão de Bordeaux

A Inglaterra, com clima desfavorável, tinha uma produção diminuta, e desde a Idade Média, sua sede por vinho foi o grande motor do comércio de vinhos na Europa. Até meados do Século XII, ela não tinha acesso aos vinhos do Mediterrâneo: a travessia continental era demasiado perigosa; e o domínio mouro na Península Ibérica impossibilitava o contorno pelo mar. Por isso, os ingleses se viam limitados aos vinhos produzidos no norte da França e Alemanha, acídulos e de pouca estrutura, como os seus próprios.

Em 1152, Eleanor, Duquesa de Aquitânia, se casou com o Duque da Normandia, que 2 anos depois, foi coroado rei da Inglaterra. Com o casamento, o Ducado, que correspondia a boa parte do oeste da França, passou ao domínio inglês. Os arredores de Bordeaux tinham poucos vinhedos, mas sua posição estratégia no estuário do rio Gironde a fazia um importante entreposto comercial. Os ingleses aproveitaram para escoar vinhos do sudoeste francês (Haut Pays), que desciam até Bordeaux pelos seus diversos afluentes. Ou seja, a fama de Bordeaux nasceu de vinhos do sudoeste francês!

Europa em 1190. Boa parte do Reino na França se encontrava de facto sob controle da coroa inglesa (fonte: Commons Wikimedia)

Logo, os comerciantes locais viram a oportunidade, e passaram a plantar vinhedos sistematicamente, para abocanhar parte desse comércio. Mas o vinho produzido, apelidado de claret, era ralo e fraco, sendo preterido pelos importadores ingleses. Sendo assim, em 1241, os comerciantes da cidade conseguem do rei da Inglaterra um decreto que garantia o privilégio de vender seus vinhos antes de todos os outros. Sem a concorrência, os produtores de Bordeaux ainda compravam parte da produção do Haut Pays, para melhorar a cor e estrutura de seus vinhos!

É claro que a qualidade dos vinhos melhorou muito com o tempo, com evolução das técnicas de cultivo e produção. Mas o grande salto de qualidade ocorreu no Século XVII, quando os holandeses drenaram os outrora pântanos do Médoc, para plantio de vinhedos. Em 1855, em ocasião da Exposição Universal de Paris, a Câmara do Comércio e da Indústria de Bordeaux criou a famosa classificação dos Grand Cru Classés. Entre os vinhos tintos, foram classificados 61 chateaux, sendo que apenas um não era do Médoc.

Era Moderna

O ano de 1453 testemunhou dois grandes eventos históricos: a queda de Constantinopla, e o fim da Guerra de 100 Anos, entre França e Inglaterra. O fim do Império Bizantino com a queda de Constantinopla resultou no fim do comércio do Malvasia grego, que era trazido à Europa Ocidental pelos mercadores venezianos. Em paralelo, com o fim da Guerra dos 100 Anos, a Aquitânia voltou às mãos da França, e o vinho de Bordeaux ficou fora do alcance dos ingleses, mesmo que por um curto período de tempo (em 1475, o comércio foi restabelecido).

Como mencionado antes, a sede dos ingleses foi responsável pela prosperidade de várias regiões vinícolas. A cidade de Jerez, no sul da Espanha, já se encontrava sob domínio espanhol, na fronteira com o Emirado de Granada, última possessão muçulmana na Península Ibérica, e por isso era chamada Jerez de la Frontera. A cidade aproveitou para abocanhar essa fatia de mercado, se tornando o principal vinho comercializado desde o Mediterrâneo. Além da Inglaterra, o vinho de Jerez também viajou com os navios espanhóis para as Américas. Para a conservação do vinho durante a viagem de navio, era habitual agregar a ele um pouco de brandy. Esse processo, chamado de "vinho de embarque", não era exatamente a fortificação como conhecemos hoje.

Em 1678, após um novo embargo da Inglaterra aos produtos da França, comerciantes ingleses, encontraram no Alto Douro um vinho de qualidade para levar à Inglaterra. O vinho descia o rio Douro, em pequenos barcos chamados rabelos, e embarcava para a Inglaterra a partir da cidade do Porto. Nasceu assim, o vinho do Porto.

O Planisfério Cantino, de 1502, retrata o mundo até então conhecido pelos europeus (fonte: Commons Wikimedia)

Novo Mundo

Na colonização das Américas, missionários levaram sementes para dar início à vitivinicultura, elemento fundamental da fé cristã. A tentativa de cultivo falhou miseravelmente no leste, dominado por videiras americanas e suas pragas, às quais as videiras européias não tinham nenhuma resistência. No entanto, o oeste, isolado pelas Montanhas Rochosas e pelos Andes, não tinha as mesmas pragas, e a viticultura se estabeleceu desde 1540 da costa da Califórnia ao Chile.

Na África do Sul, as primeiras vinhas foram plantadas em 1655, pelos holandeses, que estabeleceram na Cidade do Cabo a primeira colônia no país. Mas a produção só prosperou a partir da década de 1680, com a chegada de imigrantes franceses, protestantes, fugidos da perseguição religiosa em sua terra natal.

Na Austrália, as videiras chegaram junto dos primeiros colonos, em 1788, em Sydney. No entanto, o clima quente da cidade não era adequado. Em busca de alternativas, os colonos obtiveram sucesso em Hunter Valley, região de altitude, abrigada do clima oceânico do Pacífico. Posteriormente, o cultivo se espalhou em direção ao sul, nos estados de Nova Gales do Sul, Victoria, e finalmente, Austrália do Sul.

A praga da filoxera

Em 1863, foi descrito pela primeira vez no Languedoc, França, um ataque de filoxera. A Phylloxera vastatrix é um minúsculo inseto que suga a raiz das videiras. A praga é original do leste do continente americano, onde as videiras nativas estavam adaptadas a elas. A praga provavelmente foi levada à Europa, junto a espécimes de videira americana, que passaram a ser levados à Europa indistintamente.

No entanto, as variedades européias não resistem à praga, e por isso, sucumbiam e morriam em função do ataque. A filoxera de espalhou rapidamente por todo o continente europeu: Douro, em Portugal (1865), Vale do Ródano e Suíça (1871), Cognac (1872), Alemanha (1874), Áustria e Bordeaux (1875), Vale do Loire (1876), Espanha (1877), Borgonha (1878), Itália (1879 e 1880), Champagne (1894), etc. A praga também causou devastação no Novo Mundo: Califórnia (1873), Victoria, na Austrália (1875), África do Sul (1880), Peru (1888).

Poucas regiões do Mundo são imunes ao inseto. Ele não sobrevive em solos arenosos, como Colares em Portugal, Santorini na Grécia, encostas do Monte Etna na Itália, e a ilha de Chipre, dentre outros; Também não sobrevive no solo de ardósia do vale do rio Mosel, na Alemanha. O Chile, com seu isolamento geográfico, protegido pelos Andes, deserto do Atacama, Pacífico e geleiras da Patagônia, nunca foi infectado, e o país possui um intenso controle sanitário para garantir que continue livre da praga. Também o estado da Austrália do Sul é uma zona livre de filoxera, e possui um forte controle de quarentena com o estado de Victoria, para impedir a entrada da praga.

Em 1868, o inseto foi identificado como causador da morte das videiras. Levaram 3 anos mais para o surgimento da solução efetiva, a única forma usada até hoje para se precaver da praga: a enxertia de videiras européias em raízes de videiras americanas, resistentes ao inseto.

O episódio da filoxera foi um divisor da história vinícola moderna. Diversos vinhedos foram dizimados, milhares de variedades foram extintas, regiões outrora prósperas devido a seus vinhos caíram na obscuridade, pela dificuldade de se recuperar financeiramente; e vinhedos cultivados com variedades misturadas foram substituídos por vinhedos monovarietais.

Referências

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