26 de julho de 2021

Alimentos de alto risco

Conforme mencionado na Introdução à harmonização, a maioria dos alimentos é bastante flexível, permitindo uma ampla gama de vinhos. No entanto, alguns possuem características que os tornam mais complicados. Esses alimentos de alto risco possuem uma ou mais das seguintes características:

  • muito sal: o sal reduz a percepção de aromas frutados, de acidez, e ressalta amargor;
  • amargor: o amargor no alimento reduz a sensação de acidez do vinho, ressaltando o amargor deste;
  • taninos: alimentos com taninos ressaltam os taninos e amargor dos vinhos;
  • acidez: comidas ácidas podem anular a acidez do vinho;
  • picância: a picância e o álcool se ressaltam mutuamente, e podem se tornar desagradáveis;
  • untuosidade: bloqueia as papilas gustativas, anulando o sabor dos vinhos;

A seguir, temos alguns exemplos desses alimentos, e conselhos de como lidar com eles.

Presunto cru (sal)

O jamón ibérico, incluindo o presunto pata negra, é uma iguaria muito tradicional na Espanha. Sua harmonização tradicional é o vinho tinto, porque o consumidor espanhol tem preconceito contra outros estilos. Os sommeliers do país sugerem outras opções, que vão desde espumantes Cava (coringas), aos vinhos fortificados de Jerez. Mas seria o Fino, Oloroso, ou Cream? Há recomendações para os diferentes estilos.

Na Itália, mais especificamente na Emilia Romagna, o prosciutto costuma ser apreciado ao lado de um bom Lambrusco tinto. Mas o Lambrusco que consomem lá não tem nada a ver com aqueles que costumamos encontrar por aqui. Seu trunfo é o caráter frisante, que limpa o palato.

Saindo da tradição, vinhos fortificados secos (ou pouco doces), que têm alto teor alcoólico e ligeiro teor de açúcar, funcionam como um elemento de contraposição (harmonização por contraste). São exemplos o Porto Branco, o Madeira e o Marsala, em suas versões secas.

Aspargo e alcachofra (amargor)

Esses dois legumes, assim como outros, são alimentos com amargor. Se consumidos puros, in natura, não facilitam a vida do sommelier. Há uma corrente que recomenda evitar vinhos com amargor, no caso de alimentos amargos. Mas é exatamente o Jerez Fino, vinho com amargor e baixa acidez (detalhe importante), a melhor solução para harmonizar esses dois legumes.

Por outro lado, mais provável que o aspargo ou a alcachofra seja apenas um ingrediente no prato, e isso muda tudo. Eles normalmente deixarão de ser protagonistas, ou terão seu amargor reduzido. Por exemplo, em um risoto de aspargos, o amargor deixa de ser um problema; e neste caso, uma opção clássica é um Sauvignon Blanc, que costuma trazer notas vegetais, muitas vezes, similares aos aspargos.

Em outro contra-exemplo, aspargos e alcachofra podem ser elementos de uma salada, composta com folhas - que também são alimentos amargos - e temperada com vinagre ou limão. Neste caso, o elemento ácido passa a ser predominante; e a pedida passa a ser um vinho branco leve, e com boa acidez (dentre os quais, o Sauvignon Blanc).

Vinagre e limão (acidez)

A acidez no alimento diminui a sensação de acidez do vinho. Por isso, alimentos preparados com quantidade significativa de vinagre ou limão precisam de vinhos brancos, leves e muito ácidos. É o caso de saladas, ceviche e escabeche. Se não tiver acidez suficiente, o vinho ficará insosso, e eventualmente amargo.

Ovos (untuosidade)

O ovo não causa um conflito direto com elementos do vinho, mas também não interage com ele. E devido à sua untuosidade, ele pode anular o mesmo. O melhor amigo da untuosidade é o álcool, e vinhos fortificados secos, como os de Jerez, mais uma vez, aparecem como uma opção interessante.

Mas como sempre, uma coisa é o ovo como elemento predominante, outra é como acompanhamento. Em um bife a cavalo, ou um egg-cheeseburguer, por exemplo, a carne é o alimento predominante; e o ovo não irá causar reações negativas.

Pimentas, gengibre, wasabi, raiz forte (picância)

A sensação de picância é potencializada pelo álcool e pelos taninos, e amenizada pela acidez e pelo açúcar. Caso a influência desses elementos seja pouca, não há restrição de vinhos. Mas caso se deseje suavizar sua intensidade, como normalmente ocorre em pratos mais exóticos, a melhor opção são vinhos brancos, leves e aromáticos, com baixo teor alcoólico e leve dulçor.

Chocolate (untuosidade e taninos)

O chocolate preto é um alimento desafiador: tem amargor, untuosidade, açúcar, e ainda tem taninos (que normalmente passam desapercebidos devido à untuosidade). A untuosidade pede álcool; enquanto amargor e açúcar pedem baixa acidez e alta doçura. Portanto, a melhor opção está entre os vinhos fortificados.

Há fontes que recomendam evitar vinhos com tanino, porque o chocolate já tem tanino. No entanto, a untuosidade do chocolate é tamanha, que facilmente anula vinhos sem tanino. Não à toa, as harmonizações (por similaridade) mais recomendadas são vinhos fortificados tintos, como Vinho do Porto da família Ruby (com destaque para LBV e Vintage). Além disso, o sabor de frutas vermelhas desses vinhos complementa muito bem o chocolate.

Há quem arrisque consumir chocolate amargo com vinhos tintos secos. Apesar de fora do tradicional, pode dar certo. Basta escolher um tinto alcoólico, com baixa acidez, talvez até com um pouco de açúcar residual. Dentre os Malbecs argentinos e Zinfandéis da Califórnia, há vários assim.

Quando o chocolate é um ingrediente, é preciso levar em consideração o restante do prato. Um mousse de chocolate vai pedir um vinho ainda mais doce e alcoólico. Já um filé ao molho de chocolate, um tinto seco, tânico e alcoólico é uma boa pedida.

Obs: a situação fica mais difícil para o chocolate ao leite. É mais doce, mais untuoso, e tem menos taninos. Devido à maior doçura, é ainda mais difícil achar um vinho. O PX é dos raros vinhos mais doces, e se a experiência não se tornar enjoativa, pode ser a melhor aposta.

Feijão preto

A melhor bebida (a mais consensual) para acompanhar feijoada é a caipirinha. Mas sempre há gente tentando achar um vinho. E a discórdia é grande entre enófilos.

Por ser um prato pesado, e cheio de carnes gordurosas, há quem defenda um tinto muito encorpado. Mas o feijão preto é um alimento amargo e tânico, que ressalta o amargor dos vinhos tintos. Além disso, com prato e vinho muito pesados, a experiência fica cansativa, pesada demais. Há quem opte por algo mais leve, mas sem abrir mão dos taninos, com um espumante tinto; mas o feijão ainda briga com os taninos, causando amargor, e anulando a fruta.

Outra linha é tentar um vinho leve, sem taninos marcantes, e com muita acidez, que harmonize por contraste, limpando o palato e tirando a sensação de peso. Um Vinho Verde, ligeiramente frisante, pode desempenhar esse papel sem ser anulado pelo prato. Outra opção pode ser um Lambrusco di Sorbara Secco, que tem taninos leves e também é frisante.

Queijos

No imaginário popular, vinho e queijo foram feitos um para o outro. No entanto, queijo é um dos temas mais difíceis na harmonização com vinhos, pois entram em conflito mais frequentemente do que harmonizam. A maior parte dos queijos tem amargor, e uma untuosidade que não permite a associação com taninos, causando amargor nos vinhos tintos. Além do mais, muitos queijos têm sabores muito fortes, que facilmente se sobrepõem a muitos vinhos.

Existe uma infinidade de tipos de queijo, mas grosso modo, quanto à harmonização, podem ser divididos em 6 grupos:

  • queijos brancos: recomendam-se vinhos brancos leves;
  • queijos de casca mofada: espumantes, vinhos brancos sem amargor (leves e/ou semi-secos);
  • queijos 'fedidos' de casca lavada: brancos aromáticos e/ou suaves;
  • queijos semi-moles: preferencialmente brancos encorpados;
  • queijos duros: os mais flexíveis, aceitam de espumantes a tintos médios, passando por vinhos doces pouco intensos;
  • queijos azuis: harmonizações por contraste, com vinhos doces intensos;

Mais detalhes, no próximo texto.

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